02 janeiro 2006

A ODISSÉIA DE UM ERMITÃO - CAP I

(por Ronaldo Torres )

Beto sentou-se nervoso e irritado no estepe, vociferando impropérios contra tudo e contra todos. Decididamente o Universo conspirava contra ele. Nada dava certo naquela manhã fria e chuvosa. Só faltava, agora, cair um raio em sua cabeça, o que não descartava tal possibilidade ante o negror eletrizante do céu e o troar assustador dos trovões.

Ele era um eremita da periferia, uma espécie de Urtigão moderno. Apesar de usar ceroula de bolinhas, espingarda de soca-tempero e possuir um cachorro chamado Cão, possuía telefone convencional, carro na garagem e forno microondas. Ao contrário do herói em quadrinhos, faltava um Donald e um Peninha para atanazar o seu juízo e a Madame Mim com sua paixão feiticeira para completar o enredo.

Uma vez se apaixonou por uma fada divinal que cruzou o seu caminho, com varinha de condão e pó de pirlimpimpim que fez voar o seu coração além das nuvens.
Viveriam sete e meia semanas de amor se uma outra varinha, que não era de fazer mágica, não tivesse se intrometido no seu romance no exato instante em que a fadinha desnudou-se em entrega total para o seu amante, em um bailar sensual e provocante. O dia estava amanhecendo e um raio de luz desencadeou o princípio conspiratório do Universo naquela manhã:

– Um travesti! Você é um traveco! Ai meus sais!... – e desmaiou.

Voltou a si quando uma balde de água gelada foi jogado em seu rosto. Levou um tempo para tomar pé da situação, entender o sucedido, identificar o seu engano.
Onde foi que vacilou? E quem lhe jogou água gelada àquela hora da manhã? Não havia ninguém em casa. A chuva fazia barulho lá fora e então compreendeu o acontecido: havia uma goteira considerável sobre sua cabeça. Goteira não: cachoeira. Não fora um balde d’água, mas apenas a água da chuva pela falha do telhado, provavelmente causada pelos gatos da redondeza.

Pelo silêncio reinante, quebrado apenas pelo barulho da chuva, percebeu que o traveco havia se mandado pros quintos do Inferno. Ainda bem. Isso evitaria o vexame de olhar nos olhos de sua ex-amada e controlar sua aparente repugnância. Estremeceu ao lembrar-se que, por um triz, não caía de boca em um sessenta e nove. Teria sido sua perdição.

Levantou-se. Dirigiu-se ao banheiro para uma ducha reparadora. Ficou na dúvida se usava Criolina ou sabonete comum para tirar o perfume da maldita impregnado no seu corpo e que atingia a sua alma. Abriu a torneira. A água esguichou e parou. A caixa d’água estava vazia. Vestiu um pijama de bolinhas e foi até a casa da bomba. O disjuntor estava armado, havia energia, mas a bomba não funcionava. Será que queimou? Só podia ser isso. Encostou o nariz na carcaça do motor, aspirou fundo, e sentiu o cheiro de fio queimado. Entrou em casa,procurou um eletricista nas páginas amarelas, encontrou um que morava nas redondezas, pegou o telefone e... mudo. Droga! Deve ter caído alguma árvore sobre os cabos telefônicos. Todas as vezes que chovia, acontecia a mesmíssima coisa.

Anotou o endereço do eletricista, pegou a chave do carro e foi para garagem. De longe notou que um pneu traseiro estava vazio. Abriu a mala, pegou o macaco, chave de roda, levantou o pneu, retirou, jogou ao lado e, quando pegou o estepe, percebeu que o mesmo também estava vazio.

Depois de meia hora sentado no pneu, blasfemando e vociferando contra o mundo, decidiu caminhar um quilômetro até o ponto de ônibus mais próximo, para chamar o eletricista, debaixo de uma chuva que mais parecia um dilúvio. Como morava em uma região de baixa densidade demográfica, tão cedo a companhia telefônica não consertaria os cabos. Da última vez que isso aconteceu, levou semanas.
Aproveitaria a empreitada para chamar um borracheiro.

O ônibus chegou lotado. Parecia que todo mundo do bairro encontrava-se na mesma situação dele: com os pneus dos carros furados. Instalou-se perto do motorista e aproveitou a super-lotação para fazer terra numa boazuda que esfregava o traseiro em suas partes. Esfrega daqui, esfrega dali, começou a se animar, de repente, um grito:

– Fui assaltada! Roubaram minha carteira! Motorista, leve o ônibus pro Distrito! Foi este safado aqui!

– Eu?! – respondeu Beto, atônito e incrédulo – A senhora tá brincando...

– Foi você mesmo, seu safado!

Para sorte do Beto, que ia ser linchado dentro do ônibus, apareceu uma viatura da Polícia. O motorista fez sinal, encostou, puxou Beto pelo pescoço e entregou aos policiais. A senhora entrou na viatura enquanto Beto era jogado no camburão, na parte traseira do veículo. No Distrito Policial o chefe de serviço, um cearense dos olhos amarelos, treinado pela S.W.A.T., espremia o meliante para fazê-lo confessar, indiferente aos seus apelos de inocência e para o avançado de sua idade. Havia uma gang de velhinhos aterrorizando a região e aquele ali tinha cara de ser o chefe. Se não fosse, acabaria sendo. Tapas, bolos de palmatória, choque elétrico e, por último, pau-de-arara. Quando amarravam o suposto chefe da súcia anciã no travessão, o telefone celular da denunciante tocou. Era o seu marido, aflito, avisando que a mesma havia esquecido a carteira em casa.

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