04 abril 2006


A Saga de Catende

Capítulo Três - Cotidiano Agreste



O Oratório foi trocado por um quarto normal, dividido com as primas, não mais com santos enormes de olhos de vidro.

Construído sobre um barranco, o casarão de Catende tinha muitos aposentos nos seus altos e baixos, formado por duas partes unidas em uma escadaria. Na de cima ficavam os ateliês, onde as mulheres costuravam para a família e o sustento, com grandes máquinas de bordar em cairel.

Havia também uma enorme cozinha desativada e os chamados quartos dos mortos, trancados, com suas camas, colchões e fantasmas, onde ninguém podia entrar, visitados apenas pelo pó.

Mas o coração palpitante de tudo era a parte de baixo, ao redor do quarto de Dindinha dando para o enorme banheiro verde, com entrada também para a varanda. Nele, um imenso chuveiro de latão, verdadeira ducha caindo sobre um quadrado de tijolos, formava espécie de piscina tosca que as crianças adoravam. Os banhos eram sempre frios. No sertão de Catende fazia calor e o aquecimento se tornava luxo para doentes. Neste quarto de banhos havia uma privada normal, mas o banheiro auxiliar, ao lado da casa de cima, tinha apenas um buraco no chão, cercado por um estrado de madeira.

A menina Helena, acostumada com os confortáveris banheiros da Gávea, na Zona Sul do Rio, tinha pavor de usar este buraco, apontando para um poço interminável. Sorte que no casarão, como em todo interior nordestino, havia um urinol embaixo de todas as camas, usado nas necessidades noturnas e emergências. E também lindas escarradeiras de louça pintada.

Uma vez por semana, o avô Cordeiro, única pessoa a manifestar afeição pela neta, dava a ela dois tostões para comprar coisas na feira. Estas simples moedas eram seu maior tesouro, manifestação de sua individualidade, a possibilidade de algo verdadeiramente seu, não apenas herdado ou adquirido em lote para os agregados da família.

Na feira semanal, alem de alimentos, havia jóias rústicas de couro, artesanais, enfeites múltiplos e água de cheiro em grandes garrafas de vidro, que eram sua paixão. Com estes pequenos mimos sentia-se única, apesar dos vestidos simples, que foram substituindo as lindas roupas trazidas de casa, e das feias alpercatas pretas, iguais para todos. Por causa delas levara uma das reprimendas assustadoras de Dindinha ao acalcanhar a parte de trás que machucava o pé: “Na minha casa não entra mulher de chinelo!”

Nunca soube a razão da ojeriza da avó por eles. Talvez lembrasse um hábito das que viviam na rua proibida, onde ninguém da casa podia passear, personagens da escuridão e segredo das alcovas e dos cochichos infantis.
Talvez significasse para aquela sertaneja forte, um símbolo de preguiça e acomodação, o arrastar ritmado de pés pela casa. Dindinha detestava fraqueza.

A água de cheiro era usada nas poucas festas e as idas ao cinema – uma sala no centro da cidade com apenas a tela e o piano. Na cidade grande já havia cinema falado, mas no interior, ele era mudo, mudissimo, as cenas acompanhadas por um instrumentista que mal sabia batucar as teclas. Foi ele que protagonizou uma das histórias mais curiosas de suas lembranças infantis.

Era sexta-feira da Paixão e, no religioso interior nordestino, o filme tinha que ser sobre a vida de Cristo.

Todos levaram suas cadeiras e se acomodaram para assistir compungidos e excitados, às cenas piedosas. Estavam neste clima de emoção diante dos sofrimentos de Jesus quando, ao chegar à parte mais importante e dolorosa do filme, a cena em que o Cristo era colocado na cruz, o pianista, já sem repertório e confuso sobre o que tocar para combinar, atacou da carnavalesca:.

...o tatu subiu no pau, é mentira de ocê...

Foi um susto e depois gargalhada geral. Mas o pobre continuou contratado.


Não devia ser fácil arrumar outro naquele distante sertão.